Brazil

Brazil

Uma Democracia Consolidada Continua Sendo a Opção Imbatível

O regime democrático que o Brasil conquistou nos anos de 1980 com a realização das eleições diretas após quase trinta anos de regime militar vive hoje sob ameaça. A democracia enfrenta agora a sua maior prova de força quando os problemas sociais e políticos do país se agravaram em um ano de eleições presidenciais.

Por José Vicente de Sá Pimentel  | 16 de Junho de 2022

Emigrantes enfrentam vários desafios, até se consolidarem no novo destino. Os brasileiros não fogem à regra. A boa acolhida, muitas vezes, deve-se à nossa simpática imagem no mundo. Isso graças à cadência do samba, à inventividade no futebol, à alegria do carnaval, ao nosso potencial econômico e ao retrospecto histórico sem guerras.

É nosso dever preservar a imagem dinâmica do Brasil pelo mundo afora correlacionando essa positividade à evolução dos acontecimentos internos do país. Surge, então a conveniência de acompanhar de perto e com serenidade o momento atual brasileiro neste ano de eleições presidenciais.

“Uma ampla reforma administrativa deveria ser a primeira etapa de um conjunto de medidas
destinadas a modernizar o modelo de administração pública do país”.

Começamos, então, pela agenda do presidente Jair Bolsonaro na época em que ele era candidato à presidência da República. A eliminação de certos entraves, considerados como a principal causa do baixo crescimento do Brasil no governo Dilma Roussef, afigurava-se prioritária na agenda dele.

Vale salientar que uma ampla reforma administrativa deveria ser a primeira etapa de um conjunto de medidas destinadas a modernizar o modelo de administração pública do país. Isso em paralelo a uma reforma do sistema tributário que o simplificasse. Assim, estimularia a produtividade e o investimento, aumentando emprego e renda.

No entanto, o presidente Jair Bolsonaro foi eleito e não entregou o prometido. A pandemia da Covid-19 e, mais recentemente, a guerra na Ucrânia e a desaceleração econômica na China, jogaram uma pá de cal nos planos do governo.

O resultado é que a taxa de desemprego se encontra acima dos 11%, ou seja, estão sem trabalho mais de 12 milhões de brasileiros, superando quatro vezes a população de Toronto. O salário mínimo perdeu valor de compra pela primeira vez em 28 anos.

Em vez de privatizações, intervencionismo na Petrobrás. O crescimento do PIB em 2022 vai patinar em torno de 0,65%, na previsão do mercado financeiro. A taxa de juros subiu para 12,75% ao ano, com tendência de alta (era de 2% em março de 2021).

O cenário de insegurança fiscal decorrente dos estímulos à indexação dos salários e preços, a politização institucional e as ameaças ao processo democrático aguçam as incertezas e desanimam investidores de fora do país.

A queda de 10% no índice Ibovespa no mês de abril deriva, em boa parte, dos R$ 7,7 bilhões retirados naquele mês pelos investidores estrangeiros. Enquanto as seguidas trocas no comando da Petrobras, e agora no Ministério das Minas e Energia, não se mostram eficazes para diminuir o preço dos combustíveis; pelo contrário, as intervenções na maior empresa do país diminuem a credibilidade do liberalismo governamental e magnificam a percepção de oportunismo político, sobretudo depois que os conceitos ideológicos foram colocados de canto, em benefício do pragmatismo do Centrão.

A Urgência da Mudança da Política Ambiental Brasileira

O meio ambiente é o maior trunfo do Brasil para uma satisfatória inserção internacional. Rubens Ricupero já observou que o meio ambiente é o único setor que o Brasil é de fato uma potência global, no sentido de que nenhum avanço pode ser alcançado nas discussões internacionais sobre essa matéria sem a nossa participação.

O governo Bolsonaro abriu mão da força da pauta do ecossistema brasileiro e rompeu com as políticas ambientais que vinham sendo seguidas desde 1985 pelos governos democráticos e, mais ostensivamente, a partir de 2002, quando sediamos a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

Aberta a porteira pelo ex-Ministro Ricardo Salles, o desmatamento na Amazônia passou a crescer sem parar, limitando-se o governo a recorrer às Forças Armadas e a improvisadas, caras e ineficazes operações de emergência. Ato contínuo, investimentos veem sendo interrompidos e até o agronegócio sente-se prejudicado por boicotes e outras ações danosas, alegremente apoiadas por nossos competidores na área dos agroalimentos.

O caso do Fundo Amazônia é paradigmático, por ter sido o primeiro de vários. Até 2018, esse fundo, no qual a Noruega e a Alemanha eram nossos principais parceiros, havia alocado R$ 3,4 bilhões a programas de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento na região.

Ao romperem ruidosamente com o governo Bolsonaro, Alemanha e Noruega emitiram um grito de alerta aos demais países da União Europeia, que de pronto colocou em banho-maria não só os programas de colaboração ambiental, mas também o ingresso do Brasil na OCDE.

Sentindo o prejuízo no bolso, presidentes de empresas e entidades brasileiras veem cobrando do governo um engajamento efetivo no combate ao desmatamento ilegal. 23 empresas e organizações representativas de 300 entidades empresariais estão enviando carta ao presidente Joe Biden, solicitando sua ajuda para que o Congresso norte-americano aprove o Amazon 21 Act, que cria um fundo de US$ 9 bilhões para a conservação de florestas tropicais.

Caso a lei seja aprovada, a mesma alocará recursos ao Departamento de Estado, o qual deverá exigir que os países beneficiários garantam a transparência dos recursos recebidos, providenciem a verificação e a divulgação dos resultados e ainda assegurem a participação de mulheres e comunidades indígenas no processo. Ou seja, a atual política ambiental terá de mudar de ponta cabeça para que o país se beneficie da lei americana.

Os Diversos Erros no Setor da Educação 

Outro setor essencial, em que já tivemos uma expressiva colaboração externa, é o da educação. Lamentavelmente, o MEC afundou-se em crises na presidência Bolsonaro. Gestões polêmicas, ataques à autonomia administrativa e financeira das universidades, inação no Fundeb, ameaças ao ENEM, denúncias de corrupção no FNDE e frequentes trocas de ministros justificam dúvidas sobre o modelo educacional que se pretende estabelecer e a competência do governo para gerenciá-lo.

A irrupção da Covid-19 foi uma tragédia global, mas é possível argumentar que propiciou uma oportunidade preciosa para o Brasil capitalizar seus trunfos na área da saúde pública. A capilaridade do SUS e a competência técnico-científica do Instituto Butantã e da Fiocruz, ancoradas na vitoriosa e globalmente reconhecida tradição brasileira na vacinação em massa, alçavam o Brasil a um lugar proeminente no esforço mundial para desenvolver vacinas, imunizar a população e participar em alto nível dos programas mundiais.

Infelizmente, a resposta do governo Bolsonaro à pandemia deu muito errado. O negacionismo militante, o boicote do distanciamento social, a defesa insistente do charlatanismo, da cloroquina e de outras drogas desautorizadas pela Anvisa, as crendices sem fundamento sobre os efeitos colaterais das máscaras e das vacinas, o desrespeito às vítimas da Covid e seus familiares só poderiam dar no que deu: mais de 666 mil mortes por coronavírus, número que ainda cresce e agracia o Brasil com um desonroso vice-campeonato no rol das nações com maior número de vítimas da pandemia.

Países amigos estão começando a considerar denúncias de entidades civis brasileiras sobre os erros cometidos. Na Itália, por exemplo, o Tribunal Permanente dos Povos deverá examinar, sob a presidência do jurista Luigi Ferrajoli, a acusação de que o governo Bolsonaro cometeu crimes contra a humanidade ao sabotar medidas sanitárias e retardar a compra de vacinas.

A Ameaça de um Golpe de Estado

Nada, contudo, será mais danoso para a imagem brasileira no exterior do que a concretização da ameaça de um golpe de Estado, caso Bolsonaro perca as eleições de outubro próximo. O presidente vem repetindo acusações às urnas eletrônicas, operadas com segurança há 22 anos, e trazendo as Forças Armadas para o centro do debate político, ao insistir que se encarreguem de validar a votação.

A repetição semanal desse discurso, sem nenhuma fundamentação técnica, parece seguir a cartilha do ex-presidente Donald Trump, de quem Bolsonaro é admirador confesso. Por isso, muitos comentaristas deduzem que, se alguém que não o incumbente ganhar as eleições, Brasília está fadada a sediar algo no estilo do que foi feito em Washington, no 6 de janeiro seguinte às eleições americanas de 2020.

Ocorre que a invasão do STF e/ou do Congresso configuraria um golpe de Estado, que seria transmitido ao vivo e online para todo o mundo. Não há dúvida de que a repercussão seria negativa. Expressivos líderes mundiais — entre os quais Justin Trudeau — protestariam e imporiam sanções ao governo brasileiro.

E quem se pronunciaria a favor dos insurgentes? Joe Biden com certeza não, haja vista o seu apoio à comissão do Congresso americano que investiga os eventos de 6 de janeiro.

Isso sem falar do desagrado que lhe terá causado a demora do governo brasileiro para cumprimentar Joe Biden pela vitória eleitoral, no que configurou mais um episódio da militante afinidade da família Bolsonaro com os Trump. Emmanuel Macron também não; as ofensas gratuitas que sua mulher recebeu em agosto de 2019 acrescentariam motivos pessoais para a França liderar a União Europeia numa censura aos golpistas.

Tampouco Xi Jinping, que já vem retribuindo, com fina ironia, as grosserias da época das “vachinas”, haja vista o convite que encaminhou para que a Argentina participe da próxima reunião do BRICS. A Argentina, o Chile e a Venezuela, países que são alvos de declarações agressivas de nossos governantes, logo impediriam qualquer movimento solidário do grupo latino-americano. Vladimir Putin seria o único que talvez nos apoiasse, um apoio que, convenhamos, nas circunstâncias vigentes equivaleria a um beijo da morte.

O Respeito à Voz das Urnas

Este artigo não tem a intenção de prever o resultado das eleições de outubro, menos ainda a pretensão de apostar que eleitores possam reagir com violência a uma frustração eleitoral. Sugere apenas que o respeito à voz das urnas, inclusive quando determina alternância no poder, é a tradição que nós, brasileiros, dentro e fora do país, temos interesse em manter. Confrontos e ameaças à democracia geram, internamente, resistência em boa parte da população e, no front externo, censuras diplomáticas, desgastes na imagem do país e restrições à cooperação e a investimentos internacionais. Por isso, que vença o melhor na eleição de outubro, e o melhor é a democracia.

—-

 

*Clique   aqui   e assine nossa Newsletter.

A edição de verão da revista DISCOVER está disponível no nosso website:

www.magazinediscover.com/discover-digital/

José Vicente de Sá Pimentel

José Vicente foi Cônsul Geral em Toronto de 2014 a 2016. Está atualmente aposentado do serviço exterior.

Veja também