Toronto Fringe Festival terá peça inspirada em obras da literatura brasileira
Brasileiros e canadenses trazem para o palco do festival montagem inspirada em obras de autores como Euclides da Cunha e Graciliano Ramos
Por Jandy Sales | 18 de junho de 2024 | Fotos: Marcelo Paolinelli
Os atores (da esquerda para a direita) Júlia Rodrigues, Murilo Salvador, Barbara de la Fuente e Ben Sohi contracenam história com temática nordestina na peça My Time Will Come (Minha hora vai chegar).
Mais uma edição de um dos maiores festivais do teatro independente do Canadá promete esquentar ainda mais o verão do país. O Toronto Fringe Festival, em sua trigésima sexta edição, contará com uma produção que trará um clima bem brasileiro ao evento.
A peça My Time Will Come ( Minha Hora vai Chegar ) tem uma pegada multicultural ao reunir no palco e bastidores, nomes brasileiros e de outras nacionalidades para dar voz a uma temática do sertão banhado pelo sol. Eles beberam na fonte de obras de Graciliano Ramos e Euclides da Cunha e prometem oferecer bons goles do universo desses gigantes da literatura brasileira à plateia que for prestigiar o espetáculo no Tarragon Theatre nas sete apresentações programadas para o festival.
Para quem ainda não conhece, o Toronto Fringe Festival é famoso por apresentar espetáculos que fogem do tradicional. O termo “fringe”, não deixa por menos. “Fringe” possui uma definição que se alinha perfeitamente com o espírito do festival, e a palavra em inglês significa “margem” ou “borda”, mas, no contexto artístico, podemos usar a palavra para fazer referências a produções que estão fora do mainstream.
E essa diversidade de vozes e estilos no universo multicultural canadense do Toronto Fringe Festival será exemplificada pela apresentação do espetáculo My Time Will Come (Minha hora vai chegar), cuja produção é assinada pelo produtor, Murilo Salvador – que também faz parte do elenco da peça, ao lado da atriz Bárbara de la Fuente, conhecida ainda pela atuação em produções do cinema independente.
A peça My Time Will Come (Minha hora vai chegar) promete ser um ‘reflexo’ no palco do Terragon Theatre do cenário do sol escaldante nordestino. Isso para contar a história do Seu Tarso. Ele é um senhor nordestino que tenta recomeçar a vida em meio ao ambiente árido do sertão, uma região que – vale lembrar, sobreviveu décadas atrás sob as regras de personagens que poderiam muito bem lembrar um filme de faroeste americano, mas que, nesse caso, o lugar era povoado por jagunços e cangaceiros.
Um Olhar Clínico na Peça
A atriz Bárbara de la Fuente e o produtor e ator, Murilo Salvador, compartilharam com a Revista DISCOVER o trabalho de montagem da peça My Time Will Come (Minha hora vai chegar) para o Toronto Fringe Festival e os desafiados da carreira artística em solo norte-americano.
Bárbara de la Fuente, atriz da peça My Time Will Come (Minha hora vai chegar). Foto: Arquivo da entrevistada.
Revista DISCOVER (RD) – Como foi produzida a peça, tendo como fonte livros de autores nordestinos como Graciliano Ramos e Euclides da Cunha?
Bárbara de la Fuente (BLF) – Murilo Salvador e o Logan Chatterton se inspiraram em estilos e personagens dessas obras. E coletivamente desenvolvemos as cenas. O universo desses autores é muito rico e fornece muito material de inspiração.
RD – Você acha que as histórias de escritores nordestinos são universais ou, ao trazê-las para o palco norte-americano do Canadá, isso pode levar a perder um pouco a essência da história, especialmente quando a encenação será em inglês?
BLF – Acho que existem elementos universais, como o amor, o ódio, a vingança, a compaixão. A dureza desse ambiente também é encontrada em muitos lugares pelo mundo e mesmo na América do Norte.
RD – Qual é a mensagem que a peça pretende trazer ao público?
BLF – Acho que o tema principal da peça é a redenção.
RD – O Canadá é famoso pela multiculturalidade, e o espetáculo conta com integrantes de diferentes backgrounds. Como foi o entrosamento da equipe na produção de uma peça inspirada em grandes nomes da literatura brasileira e de uma região tão peculiar como o Nordeste brasileiro?
BLF – A multiculturalidade é realmente um fator positivo. O elenco é composto na maioria de atores brasileiros, tendo apenas um ator iraniano participando. E isso é muito legal, essa troca de culturas. O Ben é muito talentoso e muito curioso sobre a nossa cultura e agora com a peça sobre o sertão. Temos também dois canadenses, a diretora e o stage manager. E é muito legal ver o interesse deles nesse lado da cultura brasileira que poucos conhecem aqui no Canadá.
RD – Fale-me sobre sua personagem na peça e como esse caldeirão multicultural do país tem contribuído para a sua formação como atriz?
BLF – Eu faço várias personagens na peça, mas a mais marcante é a Virgulina, uma cangaceira. Como atriz aqui no Canadá tenho tido experiências muito legais, já trabalhei em produções de filme e TV, tanto americanas como canadenses, em vídeos corporativos, como “standardized patient”, comerciais. Já trabalhei com diretores de diversas nacionalidades e isso é muito legal, porque você abre a sua percepção para outros estilos de atuação, o que só enriquece o trabalho de um ator.
RD – O Toronto Fringe Festival é conhecido por quebrar padrões comuns das artes cênicas. O que esse festival representa para você e como ele pode contribuir para a carreira de um ator brasileiro?
BLF – O Fringe é um espaço muito bom para a experimentação, ele permite você criar e trabalhar com o mínimo de elementos de cena, atiçando a criatividade, explorando novas formas de encenação.
RD – Esta é a primeira vez que você participa do Toronto Fringe Festival? Quais foram as outras peças e festivais dos quais você participou no Brasil e no Canadá?
BLF – Esse é a quarta vez que participo do Fringe. É um festival que guardo no coração, já que a primeira peça que escrevi foi montada no Fringe.
RD – Você tem uma carreira com diversas produções no Canadá, como o curta-metragem: Being Brave, do diretor Joffre Silva, e outras produções como A Partilha, cujo roteiro é de sua autoria, além de What We Do in the Shadows, Designated Survivor e Warehouse 13. Como você se sente diante desse cenário e qual é o maior desafio para um ator latino no mundo artístico norte-americano?
BLF – O trabalho de um ator é difícil em qualquer lugar do mundo. É uma vida de muita rejeição. Você faz muitos testes e nem sempre pega o papel. Aqui a média é pegar um papel a cada 30 ou 40 testes. Muitas vezes você está competindo com mais de mil pessoas para pegar um papel. Acho que o maior desafio para qualquer ator estrangeiro é o sotaque, ele pode ajudar como também ser um empecilho. Minha experiência como atriz aqui no Canadá tem sido na maioria positiva.
Revista Discover (RD) – Quais foram os seus outros trabalhos antes da produção da peça My Time Will Come?
Murilo Salvador (MS) – Esta é minha primeira produção teatral no Canada. Depois de me mudar para cá há sete anos, me dediquei às artes como músico em Toronto sempre com projetos relacionados à cultura Brasileira. No Brasil, fiz curso de teatro no ETA Estúdio de Treinamento Artístico e também atuei em companhias de teatro independentes.
RD – Como surgiu a ideia de produzir My Time Will Come (Meu dia vai chegar), a peça é um drama, comédia, musical?
MS – Eu tinha uma ideia muito clara de que gostaria de utilizar a liberdade artística que o Fringe proporciona para apresentar um tema cultural brasileiro que talvez não fosse viável em outros festivais ou mostras culturais mais especificas. O Teatro independente nos permite explorar e criar ideais menos “comuns”. Daí também veio a ideia de produzir uma peça que é um drama, porém com uma estética mais leve que remete levemente à um mundo mágico/desenho animado. A música instrumental ao vivo é sim um elemento muito forte na produção, porém por não haver momentos cantados, a peça não se enquadra no estilo musical.
RD – Qual é a principal mensagem da peça?
MS – A mensagem central é a de que a realidade do mundo muitas vezes leva pessoas a se tornarem amargas, fazerem más escolhas e praticarem o mal. Porém há sempre inúmeras oportunidades de olhar ao redor e redirecionar o caminho, desde que haja esforço e intenção.
RD – Como foi o processo de adaptação dos textos de Graciliano Ramos e Euclides da Cunha para o teatro?
MS – A peça não é uma adaptação. Se trata de uma criação inspirada em clássicos literários brasileiros. Quando adolescente em fase de prestar vestibular para universidades, é muito comum termos que ler clássicos da literatura Brasileira. Particularmente, os que mais me interessavam eram as histórias do sertão, talvez por eu ter sido criado no interior e vivido um pouco da vida rural no interior. Para a peça, foram utilizados personagens que representam arquétipos presentes na vida sertaneja para dar vida ao arco do personagem principal.
RD – Como ator e produtor da peça, quais foram os maiores desafios que você enfrentou durante a produção?
MS – O maior desafio em minha visão é retratar uma imagem que não é familiar à uma audiência predominantemente canadense. Temos que tomar cuidado para não cair em estereótipos. Basicamente o foco é contar de forma responsável uma história que está relativamente distante da minha realidade, por ser um brasileiro que apenas imagina, mas não vivenciou a realidade do sofrimento que é tão comum no sertão do Brasil.
Murilo Salvador: “Temos que tomar cuidado para não cair em estereótipos. Basicamente o foco é contar de forma responsável uma história que está relativamente distante da minha realidade.”
RD – O que o público canadense pode aprender ou refletir ao assistir a uma peça inspirada no sertão do Brasil?
MS – Na minha visão, muitos dos problemas sociais estão relacionados ao modo em que a colonização europeia se desencadeou. Estas questões são decorrentes da desigualdade na organização social em todo o continente americano. Mesmo em países desenvolvidos como Canadá e Estados Unidos, as feridas desse passado coletivo também deixaram marcas. Uma história vinda de outro lado do continente pode trazer muitos momentos de identificação e reflexão.
RD – Como foi trabalhar com um elenco tão diversificado e uma equipe multicultural na produção desta peça?
MS – É sempre um privilégio poder trabalhar com mentes que pensam diferente da sua. A união entre Brasil, Canadá e Irã fez a trama trilhar caminhos que eu jamais imaginaria no processo criativo de desenvolvimento do roteiro que contou com o toque especial de cada um dos membros para tomar vida.
RD – Qual é a importância do Toronto Fringe Festival para a promoção de peças teatrais inovadoras e como você acredita que a participação no festival pode impactar sua carreira?
MS – Para mim o Fringe é primeiramente um ambiente para artistas se desenvolverem em múltiplos aspectos do “fazer teatral”, e não somente como atores/atrizes. Dessa forma, espero que através do nosso espetáculo possamos transmitir sinceridade e emoção aos espectadores, focando em cativá-los para nos acompanhar em nossa jornada com futuras produções.
RD – Como tem sido a recepção da peça até agora e quais são suas expectativas para as próximas apresentações?
MS – O show de abertura acontecerá em 4 de Julho. Até o memento a receptividade de amigos e membros da comunidade Brasileira tem sido de curiosidade e orgulho por verem o Brasil sendo representado em mais um festival cultural.
RD – Quais foram os principais aprendizados ao longo do processo de produção da peça My Time Will Come (Minha Hora Vai Chegar)?
MS – Para mim fica um aprendizado de que embora haja momentos de incerteza, insegurança e medo no fazer artístico, tudo é possível desde que haja determinação e união como grupo.
RD – Você tem outros projetos futuros planejados que gostaria de compartilhar conosco e como tem sido fazer teatro, ou qualquer outra produção artística no Canadá?
MS – Após o Fringe Festival, temos a intenção de produzir o show em português para podermos abraçar ainda mais a nossa comunidade que cresce mais a cada dia no Canadá e desta forma tornar o teatro mais acessível e inspirador para aqueles que ainda não dominam a língua inglesa.
Fique Ligado
A peça My Time Will Come (Meu dia vai chegar) será apresentada no 36º Toronto Fringe Festival nos dias 4, 5, 7, 9, 11, 13 e 14 de julho no Tarragon Theatre, que fica no 30 Bridgman Avenue. A montagem é produzida pela Zeitgeist Productions. Além de Bárbara de la Fuente e Murilo Salvador, a peça tem ainda no elenco, Júlia Rodrigues, Leo Dressel e o ator iraniano, Ben Sohi. Quem assina a direção é Rosanna Saracino e o gerente de palco é Logan Chatterton, ambos do Canadá.
“O Ben é muito talentoso e muito curioso sobre a nossa cultura e agora com a peça sobre o sertão”, disse a atriz Bárbara de la Fuente sobre o ator iraniano, Ben Sohi.
A estimativa é que – ao longo dos 12 dias do Toronto Fringe Festival, mais de 1.200 artistas participem de apresentações pela cidade com espetáculos que incluem comédia, drama, musicais, improvisação, narração de histórias, teatro infantil, dança e muito mais. Para mais informações sobre o evento, acesse o site: fringetoronto.com
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